quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O Limbo Fonético-Fonológico de uma Carioca Curitibana

A letra da música “Curitiba Funk City” da banda curitibana Bonde das Impostora, a qual diz que “a gent[e] não tem sotaqu[e], é o povo d[e] fora, que é cheio de maldad[e]” é a primeira coisa que me vem à mente em se tratando de fonética e fonologia na prática. Curitibana típica, nascida e criada na capital paranaense, enchia-me de orgulho de pertencer a uma região “sem sotaque”. Afinal nossa pronúncia tão estigmatizada do E final, do S sibilado antes de consoante, e mesmo do R sem grandes vibrações é coerente com a ortografia, fonética e fonologia clássicas, pois tem o som da letra. Ou seja, falamos corretamente, em nossa autodefesa preconceituosa.
Aí um falante do leit[e] quent[e] se muda para o Rio de Janeiro. Aquele sotaque provinciano dá lugar a um sistema pronto de defesa pessoal, engatilhado pelo medo da cidade grande. Primeira providência? Não deixar aperceber-se como estranha a esse mundo de supostos malandros. Isto significa falar o idioma local. Como diz o mestre Bechara, “temos que ser poliglotas em nossa própria língua”.
Morava outrora em Laranjeiras, número cento e três. Pronunciar de acordo com minhas origens levava as pessoas a procurar o cento e treze. E o medo de ser passada para trás pelos taxistas quando, atrasada, preferia pegar a praia em vez da rua do Catet[e]? Mas ai se soasse assim! Poderia dobrar o taxímetro, passando d[e] lev[e] por Santa Teresa e ainda não perceberia. Para mim, não era fácil a neutralização do E e do U finais. Tampouco das pretônicas. Parecia forçar uma pronúncia que, além de não me ser natural, seria fruto da maldade do povo da cidade em que me inserira por escolha. De todo modo, era iminente o uso consciente da fonética para parecer o mais carioca possível: “Mai[ʒ] não pelo Catêt[i], p[u] favo[R]”, três variantes clássicas numa mesma oração. Do R constritivo vibrante velar sonoro múltiplo no fim das palavras ou antes de consoantes até hoje me incomoda a pronúncia. É antinatural à minha língua regional, com o R sempre mais alveolar e simples.
Contudo, já tenho cara de “gringa”, sou ruiva, branquela e sardenta. Antes mesmo de me julgarem sulista, recebem-me na praia com outro sonoro “good morning!”. Com receio de que me cobrem em dólar, lanço mão da minha estratégia: “[co`Ɛ], me[R]mão, sou carioca, tá maluco?”. Desconto garantido na “praiana”. Ao pedir informação ao “piloto” do ônibus então, há que se esquecer da forma polida de falar baixo, e gritar em alto e bom som: “Aê” – aqui acontece uma neutralização contrária à fala carioca, já que o advérbio usado como saudação neste contexto se escreve com I – “vai pela Primêru de Má[R]çu”. Monotongação é outro fator de segurança fonético na cidade do Rio de Janeiro. Passa mais credibilidade do que apenas chiar o S ou vibrar o R. Sigo “trenando”.

Após 13 anos de Cidade Maravilhosa, no entanto, vivo em um limbo fonético-fonológico. Meus conterrâneos já não reconhecem minha pronúncia curitibana. Meus colegas cariocas amiúde me perguntam se sou gaúcha. Ou seja, continuo tentando me inserir – sem completo sucesso – na “cidade-maravilha-purgatório-da-beleza-e-do-caos”. Agora já conheço alguns caminhos, já entendo o comportamento. Mas, para manter a rotina sem grandes estardalhaços, ainda abuso da fonética como fator de segurança, inclusive, para pe[R]tenc[ê] mê[R]mu! Difícil é entender por que alguns infinitivos fazem a apócope do R final e outras palavras marcam tanto essa característica de “falá” deste luga[R]. Mesmo assim, “quero meu crachá”.

sábado, 22 de setembro de 2018

Presente

Não, amigo, não precisa dizer que estou linda, elogio vazio de rede social. Até porque este não é meu melhor ângulo e a paisagem é bem mais bela do que eu.

Diga apenas que estou bem. Talvez, que sou inteligente, guerreira, que o inspiro porque corro atrás do que eu quero e encaro as adversidades, sem medo de ser feliz, a despeito do clichê.

Não diga como estou magrinha.

Diga que me admira porque sou ativa, porque pratico esportes, não tenho carro nem preguiça. Porque não vejo problema algum em descer a ladeira de casa de bicicleta ou a pé, de pegar carona, ônibus, VLT e metrô para chegar ao compromisso. De ir ao mercado e voltar com a mochila pesada de hortifrúti e cervejas, porque elas também fazem parte da minha dieta.

Não diga que sou corajosa porque deixei meus cabelos brancos aparecerem. Para isso, basta não pintá-los, é bem simples, não precisa de coragem.

Diga que sou corajosa porque superei a morte da minha mãe e uma depressão, porque mudei de cidade e de vida, escolhi sair de um mundo de dinheiro fácil e corrupção para outro de dinheiro curto e satisfação. Porque tive coragem de seguir meu sonho de infância e me tornar professora, apesar de a profissão ser cada vez menos respeitada e cada vez mais desvalorizada. Porque escolhi não ter filhos nesse mundo cruel e “overbooked” e encaro a minha escolha com convicção, não obstante os preconceitos e absurdos que sou obrigada, ainda, a ouvir.

Não diga que eu deveria fazer um botox para "ficar melhor" ou sei-lá-o-quê na minha fina sobrancelha, para virar dois mandarovás pisados, igual a todo mundo.

Diga que sou simpática, que meu sorriso o faz sorrir ou que meu olhar de bruxa mal-humorada lhe dá raiva. Sei que algumas pessoas mais próximas têm medo de encarar certos pensamentos meus, pois minha austeridade se reflete no olhar e na frase grosseira espontânea, quando desaprovo pensamentos ou ações. Prefiro essa sinceridade severa ao sorriso amarelo e manso da aquiescência.

Então se quiser me elogiar ou dar conselhos, não me venha mais com superficialidades que você acha que são importantes. É difícil começar a envelhecer. Ficaria mais fácil se todos enxergassem além do que se vende e do que se compra nessa caixinha de padrões restritos e inúteis. Aquilo que conquistamos e lutamos para preservar: nossa essência e nossa saúde, que o dinheiro não paga e os espelhos não refletem.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Ah, meu Rio de Janeiro

Poetizo de acordo com o momento,
quando o poema é bem-vindo.
Deixo de lado meu lamento,
seguindo.

Cidade, minha maravilha,
eu te amo e te odeio!
Misto de paz com guerrilha
no meio.

Continuo, não desisto!
A vírgula da diferença.
Olho e converso com o Cristo
na crença.

O Rio é de povo sofrido,
mas é sua gente que diz:
'Sou Carioca agradecido,
feliz!'

***
Antologia Poética
Prêmio Poetize 2015
Vivara Editora Nacional

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O que fiz ontem de manhã

Acordei com o som dos pássaros. Como todos os dias ultimamente. Tem um que canta pertinho da janela. Às vezes acho que é um bem-te-vi e outras, que ele não canta “bem-te-viiii”.  Mas é a mesma “voz”. Não gosto muito de acordar.
Moro no interior desde o solstício. Vida mais calma tem essa música urbana diferente, de rádio de elevador, mas só o repertório bom, que acalma. De repente estrondeado pelo carro de som do mercadinho que passa todos os dias. Ou do caminhão de gás.
Não acordar com despertador é uma conquista. Cada um com seu relógio biológico. Acordar aos poucos faz a gente engrenar aos poucos. Ainda tinha que meditar. Um exercício e um trato que fiz comigo mesma, na busca pelo relaxamento consciente, alternativa a remédios contra insônia. Porque fazer algo qualquer dia de manhã requer que se tenha dormido. E, cada vez mais, parece que dormir é um luxo. Lembrei-me das pessoas viciadas em remédios tarja-preta. E dos que têm problemas para dormir. Quem dorme bem, afinal? Eu durmo. É uma busca constante na minha vida, dormir é muito necessário. Sonhar é bônus. Fiquei a lembrar do meu sonho. Estava em algum lugar com minha irmã e não sei mais quem, pessoas íntimas no momento, mas que não tenho a menor ideia de quem sejam. De repente, fugimos numa Kombi azul, estilo “Pequena Miss Sunshine” e seguimos pelo elevado. Veja só, o elevado nem existe mais. E então, passando na frente da Candelária, caiu um satélite do céu em cima de um caminhão. Pensei por que sonhei isso. E me diverti com a reposta: não há explicação. Eu sonho quase sempre. E meus sonhos são bem birutas. Eu adoro.
Continuei deitada, pensando em levantar. Não gosto muito de acordar. Pode parecer depressivo – talvez seja um pouco –, enfim, não significa que eu queira morrer. Eu apenas não gosto muito do ato de acordar e levantar da cama.  Por outro lado, eu adoro ir para a cama. Deitar e relaxar. Acordar é levantar e agir. “Agir para quem planeja, pois quem se deixa levar apenas reage” – ouvi isso num seriado a que assisto. Verdade. Pensei em meus planos para o dia, e que preciso agir. O mundo já anda reativo demais. A reforma. Acabei de me mudar e obras são necessárias. A conquista por não ter despertador – e ter tempo – obriga a gente a aprender a fazer outras coisas, já que não pagaremos alguém para tais. Bom modo de se aproveitar da crise, não está fácil. Pintura de parede e faxina, por exemplo. Tenho que dar mais uma demão na cozinha. Aprendi até a passar massa corrida. E que vontade que dá de comer, que textura!, que maciez!, que brancura! Pena que é tóxica, senão dava uma colherada para experimentar. Gosto mais de passar do que de lixar. Esse é trabalhinho sujo. Mas lixei também. Depois de meia hora consegui duas bolhas nos dedinhos. E a dor no braço me lembrou da vacina antitetânica que havia tomado, depois de me cortar com um preguinho enferrujado. Vida na cidade do interior tem dessas coisas. Tem mais bicho. E casa dá mais trabalho do que apartamento. Você pode se cortar ou ser mordido. Tem bichos peçonhentos. Vacina antitetânica é importante. Nossa! Acordar e lembrar os sintomas do tétano é lamentável. Volto a ouvir o som do bem-te-vi. Agora parece que ele canta algo como ‘tô no jogo, tô no jogo’. Rio sozinha. Muito melhor que pensar nos espasmos musculares do tétano. Puxa, ainda tem que pintar o teto da cozinha. Pintar teto é castigo. O corpo-humano não foi feito para pintar tetos. Chuva? Sim, som da chuva caindo, que delícia!

Choveu muito ontem de manhã. Então eu virei para o lado e dormi mais um pouquinho. Não gosto muito de acordar.