A letra da música “Curitiba Funk City” da banda
curitibana Bonde das Impostora, a qual diz que “a gent[e] não tem sotaqu[e], é
o povo d[e] fora, que é cheio de maldad[e]” é a primeira coisa que me vem à
mente em se tratando de fonética e fonologia na prática. Curitibana
típica, nascida e criada na capital paranaense, enchia-me de orgulho de
pertencer a uma região “sem sotaque”. Afinal nossa pronúncia tão estigmatizada
do E final, do S sibilado antes de consoante, e mesmo do R sem grandes
vibrações é coerente com a ortografia, fonética e fonologia clássicas, pois tem
o som da letra. Ou seja, falamos corretamente, em nossa autodefesa
preconceituosa.
Aí um falante do leit[e] quent[e] se muda para o
Rio de Janeiro. Aquele sotaque provinciano dá lugar a um sistema pronto de
defesa pessoal, engatilhado pelo medo da cidade grande. Primeira providência?
Não deixar aperceber-se como estranha a esse mundo de supostos malandros. Isto
significa falar o idioma local. Como diz o mestre Bechara, “temos que ser
poliglotas em nossa própria língua”.
Morava outrora em Laranjeiras, número cento e três.
Pronunciar de acordo com minhas origens levava as pessoas a procurar o cento e
treze. E o medo de ser passada para trás pelos taxistas quando, atrasada,
preferia pegar a praia em vez da rua do Catet[e]? Mas ai se soasse assim! Poderia
dobrar o taxímetro, passando d[e] lev[e] por Santa Teresa e ainda não perceberia.
Para mim, não era fácil a neutralização do E e do U finais. Tampouco das pretônicas.
Parecia forçar uma pronúncia que, além de não me ser natural, seria fruto da
maldade do povo da cidade em que me inserira por escolha. De todo modo, era iminente
o uso consciente da fonética para parecer o mais carioca possível: “Mai[ʒ] não
pelo Catêt[i], p[u] favo[R]”, três variantes clássicas numa mesma oração. Do R constritivo vibrante
velar sonoro múltiplo no fim das palavras ou antes de consoantes até hoje me
incomoda a pronúncia. É antinatural à minha língua regional, com o R sempre
mais alveolar e simples.
Contudo, já tenho cara de “gringa”, sou ruiva,
branquela e sardenta. Antes mesmo de me julgarem sulista, recebem-me na praia com
outro sonoro “good morning!”. Com receio de que me cobrem em dólar, lanço mão
da minha estratégia: “[co`Ɛ], me[R]mão, sou carioca, tá maluco?”. Desconto garantido na “praiana”. Ao
pedir informação ao “piloto” do ônibus então, há que se esquecer da forma polida
de falar baixo, e gritar em alto e bom som: “Aê” – aqui acontece uma
neutralização contrária à fala carioca, já que o advérbio usado como saudação neste contexto
se escreve com I – “vai pela Primêru de Má[R]çu”. Monotongação é outro fator de segurança
fonético na cidade do Rio de Janeiro. Passa mais credibilidade do que apenas chiar
o S ou vibrar o R. Sigo “trenando”.
Após 13 anos de Cidade Maravilhosa, no entanto, vivo
em um limbo fonético-fonológico. Meus conterrâneos já não reconhecem minha pronúncia
curitibana. Meus colegas cariocas amiúde me perguntam se sou gaúcha. Ou seja,
continuo tentando me inserir – sem completo sucesso – na “cidade-maravilha-purgatório-da-beleza-e-do-caos”.
Agora já conheço alguns caminhos, já entendo o comportamento. Mas, para manter
a rotina sem grandes estardalhaços, ainda abuso da fonética como fator de segurança, inclusive, para pe[R]tenc[ê] mê[R]mu! Difícil é entender por que alguns infinitivos fazem a apócope do R final
e outras palavras marcam tanto essa característica de “falá” deste luga[R]. Mesmo assim, “quero meu crachá”.